Por Administrator
Qui, 02 de Outubro de 2014 20:20
Com julgamento de recurso do Município de
São Paulo, Tribunal de Justiça concluiu a análise de Ação Civil Pública sobre
acesso e qualidade da educação infantil, abrindo um novo ciclo na forma de se
exigir judicialmente esse direito
No último dia 1º de setembro, o Tribunal de
Justiça de São Paulo (TJSP) publicou decisão de sua Câmara Especial, na qual
julga improcedente o recurso de embargo declaratório que havia sido proposto
pelo Município de São Paulo com o objetivo de revisão do acórdão de dezembro de
2013, que determina a apresentação de plano de expansão de vagas em educação
infantil, respeitados alguns parâmetros de qualidade, além de outras
medidas. Com o encerramento dessa etapa,
a decisão passa a ter efeitos, ainda que seja possível à prefeitura recorrer
para os tribunais superiores, em Brasília.
Segundo a decisão, que tomou como base
jurídica o planejamento proposto pela própria Prefeitura em seu Plano de Metas
2013 – 2016 (artigo 69-A da Lei Orgânica do Município) e no PPA 2014 – 2017, o
Município deve criar 150 mil novas vagas em educação infantil até 2016, sendo
105 em creches. Determinou ainda que o Município apresente em juízo, no prazo
de 60 dias, um plano de ampliação de vagas e construção de unidades, de forma a
cumprir a ampliação e qualificação proposta. Tanto pela forma como foi
conduzido o processo, com a realização de inédita audiência pública no
Tribunal, como em razão do conteúdo do acórdão, trata-se de posição judicial
paradigmática, que pode vir a influenciar a resposta jurisdicional relacionada
à apreciação de violações sistemáticas a outros direitos sociais.
Quanto ao conteúdo, a decisão confirmada no último mês é inovadora em ao menos três aspectos muito importantes.
O sistema de justiça (Poder Judiciário,
Ministério Público, Defensoria Pública e advocacia pública e privada) é
frequentemente acusado de reproduzir em suas demandas e decisões uma visão
individualista, que esconde a complexidade dos direitos e desconsidera os
fatores determinantes da desigualdade e das discriminações no País. Não por
acaso, à medida que aumentam as pressões populares pela realização de direitos
há tempos prometidos pela Constituição, passamos a refletir cada vez mais sobre
o papel desse Sistema no controle e no acompanhamento de políticas públicas que
devem ser implementadas pelos governos. Há aqueles que dizem que o Judiciário
não deveria interferir em políticas públicas, ou que deveria fazê-lo com o
menor impacto possível. Argumentam que o Judiciário, por ser o único poder que
não é eleito, não teria legitimidade democrática para interferir nas decisões
dos demais. Além disso, suas decisões, majoritariamente individuais, acabariam
atrapalhando e desorganizando os poderes que formulam ações e políticas públicas
que têm como horizonte a promoção coletiva de direitos. O Judiciário, assim,
viria mais atrapalhar do que ajudar. Seria fonte de irracionalidade e de
injustiça.
É sintomático, no entanto, que a crítica à
chamada “judicialização” no campo dos direitos sociais ganhe força justamente
quando as classes populares passam a se utilizar dos instrumentos de
exigibilidade jurídica para alcançar o exercício de direitos básicos, como
acesso igualitário à educação e a medicamentos e tratamentos de saúde. É
verdade, diga-se, que nem sempre a individualização das demandas é a melhor
solução jurídica para alcançar esses direitos, mas não se trata de negar sua
justiciabilidade e sim construir novas formas de decisões jurisdicionais.
Decisões que venham a fortalecer os direitos em questão, cobrando aceleração de
programas, prioridade e combate às desigualdades.
Portanto, o primeiro aspecto inovador da
decisão sobre educação infantil em São Paulo é o vínculo estabelecido entre a
decisão e as obrigações de planejamento e de financiamento à educação. O
Tribunal determinou ao Município a apresentação de Plano de Expansão e
Qualificação de sua rede de educação infantil, a ser assegurado no orçamento
municipal, respeitados os compromissos juridicamente assumidos pela Prefeitura.
Não coube ao Judiciário desenhar tal plano ou determinar, nessa ação, o modelo
de expansão a ser adotado. As 150 mil novas vagas incorporadas à decisão
judicial eram compromisso prévio da atual gestão. Essa nova modalidade de
diálogo entre os poderes e entre estes e a sociedade civil organizada, somente
possibilitada pela realização de Audiência Pública, é um indicativo muito
importante sobre como o sistema de justiça deve atuar para oferecer respostas
adequadas a situações complexas. Situações que, no jargão popular, não podem
ser resolvidas em uma “canetada”.
O segundo aspecto inovador é que o texto da
decisão, de caráter amplo e coletivo, incorporou amplamente todo o referencial
normativo sobre qualidade da educação infantil, tanto aquele produzido no âmbito
do Ministério da Educação e do Conselho Nacional de Educação como os parâmetros
de qualidade produzidos pelo próprio Município. Esse reconhecimento judicial do
caráter indissociável das dimensões do acesso e da qualidade é uma lição
inestimável para as iniciativas futuras a serem adotadas pelo sistema de
justiça. Não será admissível, nesse contexto, que a ampliação de vagas se dê em
detrimento das condições de oferta, da valorização das(os) trabalhadoras(os) da
educação, da superlotação de unidades ou da redução da jornada educacional.
Comitê Interinstitucional de Monitoramento é instituído e passa a funcionar em outubro
O terceiro aspecto de inovação se dá na
adoção de um novo modelo de acompanhamento da execução da decisão, que
privilegia a continuidade do diálogo interinstitucional como complementação ao
processo civil tradicional. Na decisão de setembro foi confirmada a criação,
por sugestão do Grupo de Trabalho Interinstitucional sobre Educação Infantil
(GTIEI), de um mecanismo de monitoramento permanente, vinculado à Coordenadoria
da Infância e da Juventude do TJSP. A partir disso, por sugestão do GTIEI, foi
instituído junto a essa coordenadoria um Comitê Interinstitucional de
Monitoramento que terá as funções de avaliar o andamento das políticas públicas
voltadas ao cumprimento da decisão e de oferecer informações ao Judiciário. A
Coordenadoria, com a participação do Comitê, produzirá relatórios semestrais a
serem encaminhados aos juízes responsáveis pelo caso.
Do Comitê participarão a Ação Educativa e
demais associações do Movimento Creche para Todos, o Ministério Público, a
Defensoria Pública, o GT de Educação da Rede Nossa São Paulo, o Fórum Paulista
de Educação Infantil, o Fórum Municipal de Educação Infantil e especialistas.
Também foi acerta a continuidade da realização de reuniões periódicas com a
participação do Secretário Municipal de Educação e de técnicos da Secretaria.
Registre-se que em todo o processo, antes e depois da decisão, o atual
Secretário César Callegari esteve presente e aberto à interlocução, o que é em
si um fator essencial para a consolidação desse modelo dialógico e
participativo de exigibilidade judicial.
Saber em que medida esse novo paradigma de
atuação junto ao sistema de justiça será capaz de impulsionar a realização dos
direitos educativos da população ou ainda o quanto aprimorará a própria atuação
do Judiciário, do Executivo e da sociedade civil nesse campo são questões que
dependerão, em muito, da capacidade de acompanharmos essa decisão e de
seguirmos mobilizados na cobrança por prioridade à educação infantil de
qualidade, na luta contra a desigualdade no acesso a direitos, por maior
agilidade nos processos de construção e contratação e valorização de docentes e
por maior justiça na arrecadação e destinação dos recursos públicos.
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