quinta-feira, 30 de outubro de 2014

Uma nova etapa na luta por exigibilidade jurídica do direito à educação de qualidade

Por Administrator             
Qui, 02 de Outubro de 2014 20:20
Com julgamento de recurso do Município de São Paulo, Tribunal de Justiça concluiu a análise de Ação Civil Pública sobre acesso e qualidade da educação infantil, abrindo um novo ciclo na forma de se exigir judicialmente esse direito

No último dia 1º de setembro, o Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) publicou decisão de sua Câmara Especial, na qual julga improcedente o recurso de embargo declaratório que havia sido proposto pelo Município de São Paulo com o objetivo de revisão do acórdão de dezembro de 2013, que determina a apresentação de plano de expansão de vagas em educação infantil, respeitados alguns parâmetros de qualidade, além de outras medidas.  Com o encerramento dessa etapa, a decisão passa a ter efeitos, ainda que seja possível à prefeitura recorrer para os tribunais superiores, em Brasília.

Segundo a decisão, que tomou como base jurídica o planejamento proposto pela própria Prefeitura em seu Plano de Metas 2013 – 2016 (artigo 69-A da Lei Orgânica do Município) e no PPA 2014 – 2017, o Município deve criar 150 mil novas vagas em educação infantil até 2016, sendo 105 em creches. Determinou ainda que o Município apresente em juízo, no prazo de 60 dias, um plano de ampliação de vagas e construção de unidades, de forma a cumprir a ampliação e qualificação proposta. Tanto pela forma como foi conduzido o processo, com a realização de inédita audiência pública no Tribunal, como em razão do conteúdo do acórdão, trata-se de posição judicial paradigmática, que pode vir a influenciar a resposta jurisdicional relacionada à apreciação de violações sistemáticas a outros direitos sociais.

Quanto ao conteúdo, a decisão confirmada no último mês é inovadora em ao menos três aspectos muito importantes.


O sistema de justiça (Poder Judiciário, Ministério Público, Defensoria Pública e advocacia pública e privada) é frequentemente acusado de reproduzir em suas demandas e decisões uma visão individualista, que esconde a complexidade dos direitos e desconsidera os fatores determinantes da desigualdade e das discriminações no País. Não por acaso, à medida que aumentam as pressões populares pela realização de direitos há tempos prometidos pela Constituição, passamos a refletir cada vez mais sobre o papel desse Sistema no controle e no acompanhamento de políticas públicas que devem ser implementadas pelos governos. Há aqueles que dizem que o Judiciário não deveria interferir em políticas públicas, ou que deveria fazê-lo com o menor impacto possível. Argumentam que o Judiciário, por ser o único poder que não é eleito, não teria legitimidade democrática para interferir nas decisões dos demais. Além disso, suas decisões, majoritariamente individuais, acabariam atrapalhando e desorganizando os poderes que formulam ações e políticas públicas que têm como horizonte a promoção coletiva de direitos. O Judiciário, assim, viria mais atrapalhar do que ajudar. Seria fonte de irracionalidade e de injustiça.

É sintomático, no entanto, que a crítica à chamada “judicialização” no campo dos direitos sociais ganhe força justamente quando as classes populares passam a se utilizar dos instrumentos de exigibilidade jurídica para alcançar o exercício de direitos básicos, como acesso igualitário à educação e a medicamentos e tratamentos de saúde. É verdade, diga-se, que nem sempre a individualização das demandas é a melhor solução jurídica para alcançar esses direitos, mas não se trata de negar sua justiciabilidade e sim construir novas formas de decisões jurisdicionais. Decisões que venham a fortalecer os direitos em questão, cobrando aceleração de programas, prioridade e combate às desigualdades.

Portanto, o primeiro aspecto inovador da decisão sobre educação infantil em São Paulo é o vínculo estabelecido entre a decisão e as obrigações de planejamento e de financiamento à educação. O Tribunal determinou ao Município a apresentação de Plano de Expansão e Qualificação de sua rede de educação infantil, a ser assegurado no orçamento municipal, respeitados os compromissos juridicamente assumidos pela Prefeitura. Não coube ao Judiciário desenhar tal plano ou determinar, nessa ação, o modelo de expansão a ser adotado. As 150 mil novas vagas incorporadas à decisão judicial eram compromisso prévio da atual gestão. Essa nova modalidade de diálogo entre os poderes e entre estes e a sociedade civil organizada, somente possibilitada pela realização de Audiência Pública, é um indicativo muito importante sobre como o sistema de justiça deve atuar para oferecer respostas adequadas a situações complexas. Situações que, no jargão popular, não podem ser resolvidas em uma “canetada”.

O segundo aspecto inovador é que o texto da decisão, de caráter amplo e coletivo, incorporou amplamente todo o referencial normativo sobre qualidade da educação infantil, tanto aquele produzido no âmbito do Ministério da Educação e do Conselho Nacional de Educação como os parâmetros de qualidade produzidos pelo próprio Município. Esse reconhecimento judicial do caráter indissociável das dimensões do acesso e da qualidade é uma lição inestimável para as iniciativas futuras a serem adotadas pelo sistema de justiça. Não será admissível, nesse contexto, que a ampliação de vagas se dê em detrimento das condições de oferta, da valorização das(os) trabalhadoras(os) da educação, da superlotação de unidades ou da redução da jornada educacional.

Comitê Interinstitucional de Monitoramento é instituído e passa a funcionar em outubro


O terceiro aspecto de inovação se dá na adoção de um novo modelo de acompanhamento da execução da decisão, que privilegia a continuidade do diálogo interinstitucional como complementação ao processo civil tradicional. Na decisão de setembro foi confirmada a criação, por sugestão do Grupo de Trabalho Interinstitucional sobre Educação Infantil (GTIEI), de um mecanismo de monitoramento permanente, vinculado à Coordenadoria da Infância e da Juventude do TJSP. A partir disso, por sugestão do GTIEI, foi instituído junto a essa coordenadoria um Comitê Interinstitucional de Monitoramento que terá as funções de avaliar o andamento das políticas públicas voltadas ao cumprimento da decisão e de oferecer informações ao Judiciário. A Coordenadoria, com a participação do Comitê, produzirá relatórios semestrais a serem encaminhados aos juízes responsáveis pelo caso.

Do Comitê participarão a Ação Educativa e demais associações do Movimento Creche para Todos, o Ministério Público, a Defensoria Pública, o GT de Educação da Rede Nossa São Paulo, o Fórum Paulista de Educação Infantil, o Fórum Municipal de Educação Infantil e especialistas. Também foi acerta a continuidade da realização de reuniões periódicas com a participação do Secretário Municipal de Educação e de técnicos da Secretaria. Registre-se que em todo o processo, antes e depois da decisão, o atual Secretário César Callegari esteve presente e aberto à interlocução, o que é em si um fator essencial para a consolidação desse modelo dialógico e participativo de exigibilidade judicial.

Saber em que medida esse novo paradigma de atuação junto ao sistema de justiça será capaz de impulsionar a realização dos direitos educativos da população ou ainda o quanto aprimorará a própria atuação do Judiciário, do Executivo e da sociedade civil nesse campo são questões que dependerão, em muito, da capacidade de acompanharmos essa decisão e de seguirmos mobilizados na cobrança por prioridade à educação infantil de qualidade, na luta contra a desigualdade no acesso a direitos, por maior agilidade nos processos de construção e contratação e valorização de docentes e por maior justiça na arrecadação e destinação dos recursos públicos.

Nenhum comentário:

Postar um comentário